Apesar de sabermos que nunca alcançaremos uma resposta totalmente satisfatória ou categórica, continuamos na constante indagação acerca dos elementos que, nas imagens fotográficas, ancoram o referente à realidade do instante captado.
Entretanto, temos a consciência de que há muito que as fotografias deixaram de se poder declarar, à quase totalidade dos seus observadores, única e exclusivamente como “crus” fragmentos do real.
A certeza de que não podemos mais subentender a fotografia como testemunho incontestável "daquilo que foi”[1], parece ter aberto um campo inesgotável de hipóteses para um medium que passa por uma constante hibridação.
Também sabemos que, na fotografia artística, não podemos reclamar à imagem a vontade de adequação exacta ao mundo das coisas, pois as representações artísticas não se mostram como documentos de creditação do representado em relação a um referente. Na arte, todo um outro sistema de análise entra em acção, e está longe de se resumir ao nível de adequação do captado à realidade visível.
A fotografia, como prática de criação de imagens a partir da captação e fixação da luz que as coisas reflectem, transporta consigo uma inerente qualidade fragmentária. Visto não existir máquina ou lente cujo enquadramento abarque a totalidade das coisas, as imagens fotográficas parecem ser sempre peças singulares num puzzle nunca terminado.
No caso da pintura, ou mesmo do cinema, esta qualidade fragmentária não parece estar tão patente. A primeira, independente da foto-sensibilidade, estende-se num plano aberto a qualquer inclusão matérica. Quanto ao cinematógrafo, o facto de se concretizar em sucessões de fotografias no plano de projecção, permite que a obra se circunscreva temporalmente, possibilitando-lhe virar as costas a um exterior ao enquadramento do filme.
“ Aceito que a fotografia seja um fragmento da mesma maneira que uma pintura de Rafael não o é. Mas também não concordo com a necessidade de a reduzir a essa qualidade fragmentária.”[2]
Nada como um artista (fotógrafo) para questionar postulados, e permitir que no fotográfico caibam estratégias, modos de fazer, e imagens que reivindiquem “o quadro completo” da construção cinematográfica ou pictórica. O modo como este autor, e demais, constroem fotografias faz deste medium um território tão capaz como qualquer outro para a edificação de ficções.
Nesta exposição as fotografias de Cristina Regadas, de Marie Ek e de Nanako Koyama não se mostram com o mesmo desejo de completude “cinematográfica” com que vemos as imagens do canadiano Jeff Wall - a encenação de um quadro total (circunscrito, embora facultando-nos a imaginação do que se poderia prolongar para além dos limites do rectângulo) - mas também não são fragmentos de um contexto infinitamente prolífico em pontos de vista, característico do fotojornalismo.
O título desta exposição – “Introspective” (introspectivo – adaptando ao português) – revela um paradoxo evidente: como é que podemos observar as imagens destas autoras com a presença de um adjectivo que significa uma auto-analise do interior e do subjectivo, o estudo consciente do espírito por si mesmo; como é que nos pode ser revelado um lugar tão singular como a “alma” de cada um, vista por si próprio, com um meio (a fotografia) que transporta endemicamente a realidade exterior?
Como é que poderá surgir a revelação de um interior a partir das imagens fotográficas que, como estas, captam a trivialidade e mundanidade dos objectos empíricos do quotidiano?
A resposta imediata, a nosso ver, declara que este lugar interior, tão singular como cada individuo no planeta, manifesta-se não nas imagens ou em cada elemento das mesmas, mas naquilo que elas potenciam e nos sugerem para lá dos limites do enquadramento.
Não é a revelação da identidade da rapariga nipónica em “plano-médio-curto”, não é o conhecimento do motivo pelo qual a figura feminina se debruça na cama com os braços cruzados sobre a cabeça (nas fotografias de Regadas); não é a identificação precisa do lugar e da qualidade do cogumelo resguardado pelo arbusto e vigiado pela base do tronco partido, fotografado por Ek; não é a revelação dos nomes e idades das figuras captadas por Koyama, ou mesmo o número de quarto, a cidade (Tokyo ou São Paulo) em que se encontram os lugares idiossincraticamente preenchidos de objectos pelas jovens absortas nos seu espaços; não é pela identificação dos elementos e conhecimento do motivo pelo qual foi enquadrada, dentro dos limites das imagens, toda a luz que estes objectos emanam para a câmara, que reconheceremos o ser(es) interior(es) latente(s) no título desta mostra.
Mas são todos estes factores que nos permitem reconstituir o argumento que possa definir um estado interior, um estado que não se descreve mas que se sugere para lá do conteúdo de cada foto. Um interior que se indicia, tal como o rasto que o fotográfico tem acoplado a si, por ínfimo que seja, da realidade que se expõe ao olhar da câmara.
Será que na verdade ficará algo de fora das imagens? Cada uma não terá o “dever” de ser o rastilho de uma explosão de referências, individuais e colectivas, que se propagam indefinidamente, e que ao voltarmos a elas mais tarde um outro rebentamento se despoletará?
Não será a determinação do rigor da origem das coisas nas imagens que interessará procurar, mas talvez o que as mesmas nos permitem indagar das convenções, certezas perceptivas e cognitivas, que em nós se vão acomodando.
Setembro 2009
José Pereira